Mitos ambientais | Vanessa Morgado (Portugal)

Lemos com alguma surpresa um artigo do Dr. Carlos Pimenta, pessoa que nos merece todo o respeito e que é altamente conceituada e reconhecida por vários quadrantes do sociedade portuguesa. No caso concreto, foi efectivamente ele o pai das famosas demolições na ria Formosa. Foi ele o principal impulsionador das mesmas nos anos 1980.

As tais demolições de que fala o Dr. Carlos Pimenta foram efectivamente feitas em meados dos anos 80, tudo em nome do ambiente claro. O que o Dr. Carlos Pimenta se esquece de mostrar ou referir é o estado e a maneira como essas demolições foram feitas, hoje passados 36 anos, ainda lá está o entulho dessas mesmas demolições, como se pode ver nas fotografias anexas e que lá continuam para quem as quiser ver. É esta a preocupação com o ambiente que nos querem fazer crer? Outra coisa que quem nessa altura teve tantas responsabilidades se esquece de referir é o facto de até meados dos anos 90 a ilha da Culatra ser palco de grandes exercícios militares, ainda hoje uma grande parte da ilha está sob a alçada da Marinha. Para se ter uma ideia, os rebentamentos em cima da ilha eram de tal maneira, que as cisternas tinham de ser arranjadas todos os anos, pois rachavam com o impacto dos rebentamentos. São estas as grandes preocupações ambientais com as ilhas?

Naqueles tempos as preocupações e as leis do ambiente não eram o que são hoje e legitimamente esses exercícios militares eram feitos, tal como a autorização para que as pessoas ali se estabelecessem. Estamos a falar de tempos completamente diferentes. Para não haver dúvidas, o Parque Natural da Ria Formosa foi constituído em 1987, altura em que todos os núcleos habitacionais da ria Formosa estavam já completamente consolidados, como se pode facilmente comprovar nas fotografias anexas.

Podem invocar-se estudos e pareceres dos mais variados quadrantes em relação à ria Formosa, nomeadamente quanto às construções que ali existem há décadas. Todos os pareceres são isso mesmo, pareceres, muitas das vezes não têm em consideração uma série de factores, nomeadamente a ocupação humana. Estudos e pareceres há para todos os gostos e podemos eventualmente evocar outras opiniões, como por exemplo o relatório Brundtland, que em 1987 afirmava que a conservação da natureza sem a participação humana é completamente ineficaz. As pessoas fazem parte do ecossistema e não podem ser descartadas dele como se nunca lá tivessem pertencido.

Não querer entender a realidade específica da ria Formosa é uma teimosia que atravessou vários ministros, a mensagem de passar para a opinião pública que aquelas casas foram feitas e construídas à revelia das autoridades da altura é completamente falsa. Há documentos, multas, guias de transporte e fotografias que podem comprovar o contrário, e basta visitar aquelas paragens para facilmente entender que seria impossível construir o que ali está na penumbra ou às escondidas. As ilhas sempre foram uma terra de ninguém, uma zona para onde chegaram a ser desterrados leprosos, onde os pescadores fundaram aqueles núcleos, na altura das armações do atum presentes naquela zona ainda antes de 1900, há testemunhos e relatos dessas actividades. O surgimento do Farol de Santa Maria em 1851, dos hangares para apoio à armada de hidroaviões franceses na Primeira Guerra Mundial e, um pouco mais tarde, a construção da barra Faro/Olhão foram fixando pessoas naquelas ilhas, muita impulsionada pelo próprio Estado. Querer justificar o surgimento daqueles aglomerados não tendo isto em consideração é atirar areia para os olhos de quem não conhece aquelas paragens.

Outro dos mitos que se criaram é o de que as casas causam erosão à ilha. Nestas décadas de experiência e de acompanhamento da evolução das ilhas, o que na verdade se comprova é precisamente o contrário. As casas têm ajudado em muito à consolidação das areias e consequentemente à robustez das ilhas, aglomerando areias que de outra forma seriam levadas pelos ventos e temporais próprios destas zonas. Prova disto é a situação actual dos ilhotes da ria, que depois da renaturalização (demolições) se encontram praticamente submersos nas maiores marés, ou seja, o que aguentava as areias deixou de existir e o resultado é o desaparecimento quase por completo desses ilhotes. A riqueza biológica em nada sai prejudicada pela presença humana, no caso da ilha da Culatra, por exemplo, estamos a falar de uma taxa de ocupação humana na ordem dos 11% da área total da ilha. Se seguirmos o radicalismo ambiental, então teremos de pôr em causa o crescimento das cidades e nomeadamente todo o tipo de construções que ainda hoje são aprovadas em zonas sensíveis, porque a verdade é que para muitos casos as leis são alteradas a bel-prazer de certos investimentos. Será o caso de Tróia assim tão diferente em termos de características das ilhas barreira da ria Formosa? Na nossa opinião, será igualmente sensível, mas aí temos prédios de cinco ou seis andares em cima do cordão dunar, aí, a questão da fragilidade e da geologia já não se coloca? Não é possível ignorar as alterações climáticas, isso é um facto, mas a principal preocupação não deverá ser a protecção das ilhas em si? O actual ministro do ambiente afirma claramente que "as ilhas-barreira são a primeira linha física da manutenção e salvaguarda da ria Formosa - sistema lagunar que encerra um património ambiental e socioeconómico de singular valor, a sua protecção é uma prioridade do Ministério do Ambiente. Sem ilhas--barreira não há ria Formosa e, por outro lado, a ruptura destas ilhas-barreira agrava o risco do avanço do mar sobre as frentes ribeirinhas urbanas das cidades de Faro, Olhão e Tavira, bem como das povoações da Fuzeta, Santa Luzia e Cabanas. Vulnerável ao efeito da degradação e ruptura das ilhas-barreira está ainda o Aeroporto Internacional de Faro, infraestrutura basilar na economia do Algarve." Ora bem, ninguém aqui pede a protecção de pessoas e bens, durante anos o Estado pouco ou nada fez por essa protecção, inclusive, fez até alterações que vieram a revelar-se péssimas, como a remoção do quebra-mar no molhe leste da barra de Faro/Olhão e também da desprotecção do molhe Oeste na ilha da Barreta (Deserta), tendo essas alterações provocado o desaparecimento de areias tanto na ilha da Culatra como na ilha da Barreta (Deserta). A protecção das casas é uma consequência da necessária protecção destas ilhas-barreira, não porque é necessário proteger pessoas e bens mas porque é essencial proteger estas ilhas-barreira.

Por último, gostávamos de focar um dos principais e o mais ignorado aspecto no meio de tudo isto, o aspecto emocional. E aqui as posições são bem claras, especialmente por parte do pai das demolições na ria Formosa, ignorar por completo o porquê das pessoas ali estarem, o porquê de serem tão apegadas a estas ilhas, o porquê de defenderem e se preocuparem como mais ninguém o fez ao longo dos anos com aquelas paragens. E porque é que esta parte é ignorada? Porque o que interessa é "a defesa intransigente dos princípios do Estado de direito", como se a política não tivesse de ser feita para as pessoas, como se as leias não tenham de ser feitas para as pessoas. Pelo menos para algumas, porque, como já aqui escrevemos, há inúmeros casos em que a lei é alterada ao sabor de determinados interesses e, quando olhamos para determinadas áreas de Portugal e nos viramos novamente para esta insistência e para esta fúria demolidora na ria Formosa, faz-nos pensar e muito que há aqui alguma coisa que não bate certo.

SOS Ria Formosa | Vanessa Morgado
A autora do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

Fonte: Coluna Opinião DN

Comentários

Mais visitados