Movimento do mar aterra manguezal e altera ecossistema no pontal da Daniela, em Florianópolis (SC)


Ação humana interfere no lento processo natural de formação do litoral noroeste da Ilha, entre baía Norte, enseada de Ratones e Estação de Ecológica de Carijós

Restos da vegetação costeira aterrados pela maré mudam a linha da praia | Foto: Marco Santiago/ND
Ora alagados, ora aparentes e pontiagudos na areia da praia, troncos de mangue preto e siriúba, necrosados pela salinidade, parecem sobras de um bosque devastado pelo fogo. Alguns não passam de estrepes, outros têm formas estranhas, e há aqueles colonizados por minúsculas criaturas marinhas. De longe, a visão é de esqueletos vegetais no cemitério que se expande diante da baía norte.

Incomum para quem chega pela primeira vez, a fileira de estacas escuras se estende por cerca de 200 metros e é resultado do lento e constante avanço do mar. Para os leigos, a mudança começa a ficar visível a partir da transição entre o balneário e o pontal da Daniela, um dos mais completos e frágeis ecossistemas costeiros de Florianópolis.

É depois do último trecho da avenida das Palmeiras, a caminho da área protegida pela Estação Ecológica de Carijós, que a linha de praia no entorno do manguezal começa a mudar de formato. Aos poucos, a areia empurrada pelas ondas se acumula nas raízes e no solo poroso, e o que era lodo ganha uma camada extra de sedimentos.
 
Depois de sufocar outras espécies vegetais, esconde tocas de caranguejos, mariscos e, na parte alagada, altera a profundidade dos bancos de berbigão. Na outra extremidade, o acúmulo de sedimentos aterra progressivamente e seca arbustos e gramíneas que funcionavam como mata ciliar na restinga, até atingir as árvores do manguezal.

O processo se repete em outra gleba de mangue, onde as árvores mais próximas à linha da preamar também já estão secas. Camada de aproximadamente um metro de areia avança pela área antes alagada, e, lentamente, transfere a linha da praia mais a sudoeste. O mesmo fenômeno se repete em pelo menos outros dois trechos, também na porção sul do pontal, diante da enseada de Ratones.

Acostumado a catar berbigão no pontal desde a infância, o motorista Claudiomar Alfredo da Silva, o Cacaio, 54, acredita que o sumiço do molusco mais popular da Ilha está relacionado ao assoreamento do baixio. A constante mudança do fundo pelo acúmulo de sedimentos, segundo ele, aterrou antigos bancos de areia, restando apenas “casqueiros”. Ele tem constatado, também, o desaparecimento de mariscos, caranguejos, siris e camarões.

Estudo explica movimento natural
A lenta metamorfose da costa da Ilha, que na visão empírica do motorista Claudiomar está aterrando os bancos de berbigão do pontal da Daniela, chamou atenção do professor Fernando Diehl há pelo menos uma década. Em 2007, ele apresentou tese de mestrado em geografia na Universidade Federal de Santa Catarina, e chegou, basicamente, à mesma tese defendida pelo professor Jarbas Bonetti, coordenador do Laboratório de Oceanografia Costeira da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina).

“Trata-se do movimento natural das correntes marinhas e das marés, que convergem quase sempre para a mesma direção. De Norte para Sudoeste”, simplifica Diehl. Ele explica que o assoreamento do pontal é progressivo, contínuo e faz parte do processo natural de formação do litoral. “A tendência, em um ou dois milênios, é fechar unir as duas pontas, até a Barra do Sambaqui.”

Com a hidrodinâmica de mar aberto e o efeito das correntes sobre as praias da Ilha, os sedimentos são empurrados para boca norte da baía de Florianópolis. “É transportado de praia em praia, desde Ponta das Canas, Cachoeira do Bom Jesus, Canasvieiras e Jurerê”, diz. E se acumula até mudar a geografia local e formar o que o pesquisador chama de esporão, ponta que muda sistematicamente, de acordo com a repetição. “É uma costa em permanente modificação”, confirma.

Ação humana acelera processo natural

O chefe da Estação Ecológica de Carijós, Silvio de Souza Junior, 39, reforça a tese de assoreamento natural causado por correntes marinhas e vento. Mas não descarta a ação humana com um dos fatores que contribuíram para a aceleração do processo.

Entre os agravantes, Souza cita as comportas sob as pontes da SC-402, que atravessa a Estação de Carijós. Os diques de concreto construídos entre as décadas de 1950 e 60, para retificação do curso do rio Ratones, reduziu a vazão na foz. Neste caso, ainda hoje predominam as correntes contrárias, com maior hidrodinâmica, com acúmulo de sedimentos na porção sul do pontal.

“Não se sabe o quanto, mas as comportas interferem”, diz Souza, que mostra sequência de fotos que registram a lenta mudança natural, paralelamente a vertiginosa ocupação humana do pontal em 60 anos – 1938, 1957, 1967, 1974 e1998.

“Dá para ver a cabeça do pontal era uma ilhota, separada do restante do manguezal pela antiga barrinha do Ratones.” A migração do leito do rio mais para o Sul secou também parte daquela gleba do manguezal de Carijós.

A ocupação imobiliária também contribui para o “emagrecimento” da costa entre Ponta das Canas e Jurerê, aponta Silvio de Souza. Neste caso, o destino do material arrastado pelo mar também é a sedimentação da enseada do pontal.

Assoreamento soterra manguezal


Progressivo, o assoreamento não chega a ameaçar a sobrevivência do manguezal, que, segundo o oceanógrafo Silvio de Souza, se regenera sempre nas extremidades opostas, com baixa hidrodinâmica, desde que alagadas e salinizadas pelo mar. “É onde se concentra a matéria orgânica, o material lodoso, e brota a vegetação característica”, diz.

De acordo com levantamento do ICMBio, a área sedimentada atinge apenas um dos 500 hectares preservados entre os rios Ratones e Papaquara, onde se concentra a metade do manguezal de Carijós. “Não representa um risco imediato, mas é preciso monitorar. A faixa de areia forma um zigue-zague, e o mangue permanece interligado”, diz.

Segundo Souza, aquele trecho do litoral está em constante movimento por se tratar de formação geológica recente, com 20 mil anos. O pontal, por exemplo, tem menos de um século de formação.

A vegetação de restinga e as dunas, explica o chefe de Carijós, são fundamentais para a preservação do ecossistema costeiro, retém a areia levada pelo vento. Por isso é importante respeitar os 30 metros de área de marinha na hora de construir em áreas em constante erosão. “Barreiras como muros, casas ou prédios mudam direção dos ventos e das correntes marinhas”, acrescenta.

Espécies desaparecem, outras surgem

O professor Fernando Diehl também acredita que o assoreamento dos baixios do pontal aterraram os bancos de berbigão. Pela projeção dele, a tendência para os próximos milênios é o desaparecimento da enseada entre o pontal e a Barra do Sambaqui, com mudança em todo aquele ambiente costeiro.

Mudanças nas condições da planície de águas, segundo Diehl, podem alterar o ciclo de vida de organismos que vivem no fundo. Entre as prováveis influências estão a redução de profundidade, menor salinidade e concentração de diferentes tipos de sedimentos. “Isso pode afetar o banco de berbigões, onde também há excesso de extração”, argumenta, parecer semelhante ao do oceanógrafo Silvio de Souza.

O chefe de Carijós explica que o ambiente físico determina a biologia, por meio da migração natural das espécies. O aterro do manguezal sufoca tocas de mariscos e caranguejos, que são substituídas por animais que se adaptam ao novo ambiente em formação. “E assim, sucessivamente”, garante.

Paisagem costeira muda lentamente


O pontal se caracteriza pela geomorfologia extremamente frágil, com influência de ventos, ondas e confluência de marés. Quase toda a área é formada de ambientes de preservação permanente, como manguezal, riachos, restinga e praia, protegidos por legislações específicas, mas drasticamente degradados pela ação humana. A 22 quilômetros do Centro, com fácil acesso, o local é alvo fácil da especulação imobiliária.

Exemplo da ocupação é o próprio balneário da Daniela, loteamento de características residenciais e turísticas aberto sobre áreas de restinga e mangue.

O pontal está limitado a leste pelo morro do Forte, na antiga Ponta Grossa, em Jurerê. A noroeste está a baía norte e, a sudeste, a enseada de Ratones. O atual perímetro ultrapassa a 6,3 mil metros quadrados, com largura média de 435 metros, com a linha de praia se estendendo por pouco mais de três quilômetros de extensão, a noroeste.

O pontal, na sua essência geológica, é formado predominantemente por sedimentos de depósitos marinhos de praia e lagunar, entre a baía norte e a foz do rio Ratones. Trata-se de área de idade holocênica, ou seja, formada depois da era glacial.

Na porção voltada para sudeste, aflora o depósito paludial, onde se concentra o manguezal. Mas, é a noroeste, na baía norte, que se acumulam os sedimentos de origem eólica para recobrir os cordões litorâneos, formando estreita praia de areia fina.

Costa em formação


Perímetro atual
6,3 km² de extensão
435 m de largura média
3.000 m de linha de praia

Em 1985, a Lei Municipal nº 2.193 definiu o zoneamento de uso e ocupação do solo, versão que ainda vigora com algumas alterações.

Disponibilizados pouco mais de 60% da área para utilização antrópica, ou seja, para intervenção humana, e menos de 40% foram reservados à proteção ambiental.

Em 1987, o decreto federal 94.656 criou a Estação Ecológica de Carijós, unidade de conservação ambiental que engloba o manguezal de Ratones e o pontal.

Fonte: www.ndonline.com.br

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