O pescador que vê a praia diminuir: o avanço do mar em Florianópolis e região

Com faixas de areia cada vez menores, bairros da Capital catarinense podem enfrentar inundações com o avanço do mar nas próximas décadas. De olho nas projeções, prefeitura diz que já estuda soluções para algumas áreas. Na Grande Florianópolis, Tijucas deve ser o município mais afetado, após tragédia de 1961 que ainda guarda cicatrizes na população

Mar avança na praia da Daniela – Foto: Anderson Coelho/ND
REPORTAGEM: Caroline Borges
PESQUISA/TEXTO/EDIÇÃO: Beatriz Carrasco
ARQUIVO: Bruna Stroisc​​h
IMAGENS: Anderson Coelho

No inverno, durante a temporada da tainha, a rotina de Walnei Ailton Cardoso começa cedo. Antes do sol nascer, perto das 5h, ele levanta da cama e faz o mesmo caminho. Na escuridão das madrugadas geladas entre maio e agosto, seu Nei – como gosta de ser chamado – atravessa a praia da Daniela e vai a pé até a praia do Forte, no Norte da Ilha de Santa Catarina. Lá, pega o barco e adentra a imensidão do mar.
Durante os 44 anos de vida (“todos também como pescador”), um dos fatos que tem chamado a atenção de seu Nei é como o mar avança e ganha cada vez mais território. 
Ao longo dos anos, ele viu a faixa de areia da Daniela diminuir, assim como aumenta seu medo de que o “mar tome conta de tudo, até mesmo das casas”. 
Daqui a 30 anos, a praia de seu Nei pode, de fato, ser “engolida” pelo mar. É o que afirma estudo da Ong Climate Central citado na Conferência sobre Mudanças Climáticas da Organização das Nações Unidas – a COP25 -, que ocorreu neste mês em Madri, na Espanha.
O estudo, usado como pano de fundo da reportagem do ND+, revela que além da faixa de areia, logradouros, ruas e a avenida principal da Daniela sofrerão constantes inundações a partir de 2050.
A praia da Ponta, localidade que reserva lindas paisagens e onde só se chega após caminhada de 20 minutos do centrinho, será completamente afetada, conforme o prognóstico. 
Projeção mostra Praia da Daniela em 2050 – Foto: Climate Central/Reprodução/ND
“Quando isso acontecer, eu vou realmente precisar arrumar outro trabalho na cidade, pois não vai ter rancho de pescadores e vai ser mais difícil pescar. Se não acontecer comigo, vai ser com meus filhos, é triste”, diz o pescador, repousado à beira-mar. 
Pescador Walnei Ailton Cardoso, o seu Nei, vê a praia ‘diminuir’ – Foto: Anderson Coelho/ND

Com a faixa de areia já reduzida em vários pontos, a praia é quase toda protegida por vegetação. Ao longo da orla, no entanto, algumas casas foram construídas em cima da restinga – que, segundo o pescador, está ali para proteger que o mar não avance, e não para se “tornar quintal de casas”. 

Outra moradora do bairro, Maria Eloni Bonotto, de 62 anos, também está preocupada com a possibilidade de inundações. Secretária do Conselho Comunitário do Pontal de Jurerê, a médica aposentada mora na região há apenas quatro anos, mas já nota a diferença com o avanço da água.
Segundo ela, o número de construções irregulares também está aumentando na região. “Cada vez tem mais casa aqui na beirada da praia. As pessoas constroem e acham que não vai acontecer nenhum problema de inundação, ou que vai demorar muito. Mas a água chega e pega a gente quando menos espera”, alertou.

Bairros em risco em Florianópolis

Além da Daniela, outras áreas de Florianópolis podem ser impactadas pelo aumento do nível do mar. Ponta das Canas, Praia Brava, Ingleses, Jurerê Tradicional, Costeira do Pirajubaé, Tapera, Ribeirão da Ilha, Solidão e Naufragados também aparecem sob risco, segundo o relatório.

Apesar de ser uma das áreas mais afetadas segundo o prognóstico da Climate Central, a Daniela ainda não possui projetos para tentar frear o avanço do mar. Segundo a Secretaria Municipal de Infraestrutura, há projetos consolidados somente para Ingleses e Jurerê Tradicional. 

Em execução, a obra de alargamento da faixa de areia da praia de Canasvieiras está em fase de conclusão. Com investimento de R$ 10 milhões, a expectativa é que o trabalho seja concluído até o fim deste ano. 

Já na Armação e na Beira-Mar Norte – áreas afetadas em menor proporção, conforme o estudo -, a prefeitura estuda intervir da mesma forma.

Novas gerações terão que lidar com as mudanças climáticas – Foto: Anderson Coelho/ND


Marina da Beira-Mar já tem estudo sobre novo cenário


Na região central de Florianópolis, a construção do Parque Urbano e Marina da Beira-Mar, entregue para captação de empresas interessadas em novembro passado, já possui estudos de variação de nível da água.
No projeto, dados históricos de aumento das marés na região, informações sobre hidrografia e geofísica também foram levados em conta no edital.
A previsão é de que a obra seja iniciada em 2021.
Edital Marina Prevê aumento do nível do mar – Foto: Edital/Prefeitura de Florianópolis/ND

Maré alta, rotina em Florianópolis


Assim como os temporais rápidos e devastadores nos dias quentes de verão, ou do vento sul que ‘encana’ e faz os surfistas correrem para a praia do Matadeiro, a maré alta é um fenômeno conhecido de quem mora na Ilha e parte do Continente.
Para Érica Xavier de Oliveira, 60 anos, moradora do Ratones e presidente da Associação de Moradores do bairro, as inundações provocadas pelas cheias são “rotina” no bairro. 
Na localidade em que mora, logo atrás do Rio Ratones, quando chove muito ou há o fenômeno da maré alta, o quintal de sua casa fica inundado.
Moradora do bairro Ratones, Érica Xavier de Oliveira costuma sofrer com inundações – Foto: Anderson Coelho/ND
“A água por pouco não entrou na minha casa, mas todo o quintal ficou completamente alagado e os vizinhos também foram prejudicados”, conta Érica ao lembrar episódio de 2018, quando a Capital chegou a decretar situação de emergência. 
Naquele ano, a cidade teve prejuízos de mais de R$ 4 milhões com o avanço das águas. Segundo a Defesa Civil municipal, os maiores danos foram registrados em Canasvieiras, Ratones, Ingleses, Praia Brava, Matadeiro e Morro das Pedras.
Conforme a previsão da Climate Central, fenômenos extremos devem ocorrer com mais frequência nas próximas décadas. Além disso, a destruição de áreas de restinga e construções em terrenos irregulares e de preservação, também auxiliam para que as ocorrências sejam mais agressivas.
Conforme a previsão da Climate Central, fenômenos extremos devem ocorrer com mais frequência nas próximas décadas. Além disso, a destruição de áreas de restinga e construções em terrenos irregulares e de preservação, também auxiliam para que as ocorrências sejam mais agressivas.
Mesmo Ratones sendo um distrito da Ilha que não é banhado pelo mar, a água salgada chega ao bairro pelo rio homônimo – maior bacia hidrográfica da Capital. Para Érica, o aumento do nível do mar vai “afetar o ecossistema” da região, que preserva hoje a área de mangue mais extensa da cidade. 
A oceanógrafa e professora da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) Regina Rodrigues também é enfática quando o assunto é o desmatamento de áreas costeiras. Segundo a especialista, zonas úmidas como manguezais ajudam a dar estabilidade ao clima e protegem as cidades da maré alta e erosão. Com a ausência desses territórios, “os impactos serão severos”.

Construções irregulares e a maré alta


Para tentar frear as construções irregulares, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano mantém um plantão de fiscalização de obras, que a população pode contribuir com denúncias. 
Após receber as informações, a prefeitura tem até três dias úteis para averiguar o processo e realizar a fiscalização. O retorno é, no máximo, em cinco dias úteis, conforme a pasta.
Outra iniciativa firmada pelo Executivo da Capital, em agosto deste ano, é um sistema tecnológico com sobrevoo feito por drones, que identifica construções em locais proibidos. A inteligência artificial gera imagens aéreas para mapear a real situação da cidade.
Diretor da Defesa Civil municipal, Luiz Eduardo Machado avalia que, além das enchentes, o  crescimento desordenado da cidade aumenta os impactos da maré alta. 
“É um fenômeno natural, pois as praias e costa têm vida e se modificam. Qualquer ação ou alteração piora, salvo emergências. Então, não podemos construir obras rígidas [perto do mar]”, afirmou. 
Para 2020, Florianópolis terá um plano de contingenciamento. Segundo a prefeitura, a haverá intervenções nas áreas que sofrem com o problema. Avenida da Saudade, na região central, e ruas no Rio Tavares, Coqueiros e Centro serão avaliadas.


Com território em risco, Tijucas não esqueceu inundação de 1961

Ao explorar o mapa da Climate Central na região da Grande Florianópolis, salta aos olhos os impactos que podem atingir o município de Tijucas. Há 58 anos, a cidade foi devastada pela força das águas – episódio guardado na memória dos moradores antigos.

Hoje com 82 anos, Valmor Olegário Climis ainda se espanta ao relembrar a inundação que ocorreu após fortes chuvas no Estado. Na época, era motorista de caminhão e tinha 24 anos de idade. Ele e a família viram a água inundar vários bairros, inclusive a casa em que morava. 
“Choveu bastante na noite anterior, mas não teve problema. De manhã faltou água nas torneiras, e à noite a água desceu pelo rio e toda a cidade ficou no fundo, inundada. Foi uma coisa de louco”, conta. 
Além de Tijucas, as inundações e enchentes – que começaram em 1º de novembro de 1961 – chegaram a Blumenau, Brusque, Nova Trento, Santo Amaro da Imperatriz, São José e Palhoça.
Edição do jornal O Estado de 4 de novembro de 1961 noticiou tragédia em Tijucas – Foto: O Estado/Reprodução/ND

Segundo noticiou o jornal O Estado em 4 de novembro de 1961, a chuva do Vale desceu pelo Rio Tijucas e foi “tomando cidades, vilas, carregando, na sua fúria incontida, animais, casas, pessoas e seus demais pertences”. Pelo menos seis pessoas morreram.

A área ao sul do mesmo rio, em 2050 – 100 anos depois da tragédia – pode novamente ser tomada pelas águas, conforme o estudo científico apresentado na COP25. Até mesmo o trecho da BR-101 em Tijucas pode ficar submersa.

Pesquisa mostra Tijucas em 2050 – Foto: Climate Central/ND

Três mortos no Natal de 1995 

Trinta e quatro anos após a inundação em Tijucas, na véspera do Natal de 1995, a Grande Florianópolis recebeu um presente um tanto quanto indesejado: naquela manhã, a chuva intensa causou novos estragos na região. Além dos prejuízos materiais, três pessoas morreram – uma na Capital e duas em Palhoça. 
A Defesa Civil do Estado calcula que, das 9h do dia 24 até as 10h do dia 25, choveu cerca de 165 milímetros, acima da média de todo o mês (140 milímetros). Em Palhoça, 60% da cidade ficou debaixo d’água, conforme o Corpo de Bombeiros.
Em Florianópolis, os bairros mais atingidos foram Trindade, Agronômica, Itacorubi, Saco dos Limões e Centro. Na madrugada do dia 25, as rodovias SC-401 (para o Norte da Ilha) e SC-404 (para o Sul) foram interditadas.
Inundação em 1995 atingiu Florianópolis – Foto: Acervo/O Estado/ND
FONTE: ND+


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