Vanessa Hatje: "Não podemos permitir que os ecossistemas se degradem"
Tatiana Mendonça
A oceanógrafa Vanessa Hatje pesquisa a Baía de Todos os Santos há 10 anos
A oceanógrafa Vanessa Hatje pesquisa a Baía de Todos os Santos há 10 anos
A paulista Vanessa Hatje já perdeu as contas de quantas vezes pegou um barco para subir o Subaé, mas nunca consegue se acostumar com a cena. “Os mangues são muito estragados, a gente vai vendo aquelas casas muito simples com a tubulação de esgoto caindo na água do rio... É difícil assistir a isso”. Há uma década ela se dedica a pesquisar o que todo mundo vê e o que se esconde na Baía de Todos-os Santos, a segunda maior do país, que abriga em seu entorno um mundo de gente. Mais precisamente 3,173 milhões de habitantes, ou 22,64% da população do estado. Para mapear a área foi criado, em 2008, o projeto Baía de Todos os Santos, cujas ações devem se estender até 2038. Os primeiros 10 anos de pesquisas estão reunidos no livro Baía de Todos os Santos: Avanços nos estudos de longo prazo (Edufba), lançado neste mês. Vanessa coordena a terceira “onda” do projeto, como apelidaram os intervalos de cinco anos. Quando o grupo foi gestado, havia mais de 60 pesquisadores envolvidos de seis universidades baianas, mas os recursos foram se retraindo feito maré vazante. Dos R$ 2,3 milhões investidos inicialmente pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia (Fapesb), há agora R$ 750 mil do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), a serem distribuídos em estudos de 21 pesquisadores nos próximos três anos. O jeito foi mudar o foco do projeto. As ações de monitoramento da baía continuam – especialmente para analisar contaminantes e como afetam a vida das pessoas –, mas a ideia agora é investir num único tema, o carbono azul, armazenado nos manguezais, e descobrir como podem diminuir o efeito estufa.
O projeto Baía de Todos os Santos nasceu com o propósito de construir uma base de dados que possibilite a formulação de políticas públicas para a região. Dez anos depois, as descobertas feitas pelos pesquisadores já conseguiram influenciar alguma dessas políticas?
Para montar o projeto, nós conversamos com a Fapesb, as comunidades tradicionais da baía e com representantes de diversas secretarias: Meio Ambiente, Planejamento, Ciência e Tecnologia. O que ouvimos do poder público foi que havia muita dificuldade em ter acesso às informações sobre a baía. Então, os primeiros dois livros que fizemos reuniam os dados que tínhamos, como um jeito de dizer: o que nós sabemos sobre a baía é isso. Esses são os contaminantes que são problema, estão nestes locais, estas são as regiões que precisam ser mais monitoradas. Essa foi a primeira maneira de interagir com eles. De lá para cá, nós tivemos muitos momentos diferentes, com alguns governos mais próximos da gente e outros mais distantes. Nós vivenciamos uma rotatividade relativamente alta nessas secretarias, e manter essa relação estreita nessa condição fica muito mais complicado, porque não há continuidade. Recentemente, nós percebemos que os emissários do Rio Vermelho e da Boca do Rio lançam gadolínio na baía. A maior fonte do gadolínio é aquele agente de contraste que a gente recebe quando vai fazer exame de ressonância magnética. É um elemento que não é reativo aos processos de tratamento de esgoto, é um contaminante novo. Fomos conversar com a Embasa, parceira nossa, para dizer: bom, está acontecendo isso, dessa forma... Os sistemas de tratamento que a gente tem no mundo não têm condições de resolver esse problema, mas nós podemos utilizar a presença desse elemento como uma maneira de pensar se o que a gente está fazendo em termos de emissário é bom ou ruim. A maioria dos exames é feita em Salvador, mas a gente encontra gadolínio nas proximidades de Cachoeira... Uma outra ação é mapear os efeitos da carcinicultura [criação de camarões em viveiros] nos mangues. A gente tem mais de 40 fazendas na Baía de Todos-os-Santos, muitas atuando sem licença, de acordo com documentos do próprio governo. Nossa posição, como cientistas, muito mais do que buscar a resolução para um problema do ponto de vista de gestão, é dizer: aqui nós temos um problema, e esse problema merece atenção.
Mas os órgãos diziam que precisavam de dados. Vocês foram lá e forneceram. Você vê retornos em termos de maior fiscalização, de intervenções mais incisivas?
É muito difícil. Nós tivemos oito anos nos quais a fundação foi muito apoiada pelo governo do estado e promoveu essa ponte entre pesquisadores e técnicos de diversos órgãos. Infelizmente, houve um desaparelhamento da Fapesb muito grave nos últimos quatro anos, o que diminuiu essa ação de interlocução, de proximidade. Com o fim da segunda “onda” do projeto BTS finda também nossa “onda” de recursos associados à Fapesb.
Qual é então a perspectiva para os próximos 20 anos do projeto BTS?
Nós mudamos o foco, diante da mudança de magnitude de recursos. Nós começamos com o projeto que o tema era a Baía de Todos-os-Santos, e aí tinha arqueólogo, historiador, cientista social, oceanógrafo, químico, médico, um universo muito amplo. Nós tínhamos muitas ações transversais, principalmente para divulgação científica.
Produzimos uma série de cartilhas que a gente distribuía em ações nas escolas. A gente falava sobre algum tema e estimulava os meninos dizendo: olha, vamos para as universidades! Cientistas são pessoas como vocês, não é uma pessoa super-hiperdiferente do universo. São pessoas que gostam do mar, da praia, de brincar. A gente observa que as crianças que moram no entorno da baía não sabem o que é a baía. Na segunda leva, os projetos ganharam certa independência e caminhos diversos. Agora, nesta terceira etapa, a terceira “onda”, nós estamos com um recurso que é mais ou menos 30% da magnitude do que foram os outros dois. E aí nós resolvemos que ao invés de pesquisar mais superficialmente muitos temas, nós todos vamos trabalhar em um tema. O foco desta etapa são a continuidade das ações de monitoramento e o estudo do carbono-azul. Um dos maiores estoques de carbono-azul ocorre nas áreas de manguezais. Nós estamos tentando identificar a diferença de estoque de carbono em áreas de mangue bem preservado, como na região do rio Jaguaripe, e comparar com uma área de mangue que foi deflorestado por uma fazenda de carcinicultura, por exemplo, e aí ver quanto carbono a gente passa a emitir para a atmosfera. Mas, além disso, manguezal é berçário para várias espécies e é também fonte de sustento para uma grande comunidade tradicional.
Uma das pesquisas reunidas no livro mostra os baixos índices de esgotamento sanitário adequado na maioria das cidades no entorno da baía. Em Vera Cruz, é de apenas 13,67%. Na prática, significa dizer que esgoto sem tratamento tem sido despejado na Baía de Todos-os-Santos de modo alarmante. Você acredita que essa situação possa ser revertida a curto ou médio prazo?
É um problema muito sério. Em Salvador, foi feito o projeto Bahia Azul, que, em teoria, ligou toda a rede de esgoto do município e canalizou tudo isso para os dois emissários. Esse esgoto passa pela estação de tratamento – que, na verdade, é um gradeamento de retirada dos sólidos mais largos – e lança isso no oceano. Então, para a porção noroeste da baía os problemas diminuíram muito. Mas o processo de ligar a rede de esgoto dos domicílios à rede é uma obrigação do usuário, e não da Embasa. Então, imagine que muita comunidade com menos recursos não vai fazer essa ligação, correto? Para muitos municípios, é um problema muito grave. Só não é mais grave porque a Baía de Todos-os-Santos é imensa, é a segunda maior do Brasil. É um ambiente bastante dinâmico, tem uma circulação de água relativamente alta, o que favorece de certa forma a diluição, mas definitivamente não resolve o problema. A gente foi fazer um trabalho de campo na região de Baiacu, em Itaparica, e lá a gente viu criança brincando na planície de maré, defecando na planície de maré, com os pais a poucos metros dali catando mariscos que seriam utilizados na alimentação, e no final do dia usavam a maré para levar o lixo embora. Esse é um uso muito equivocado do ambiente. O manguezal é fonte de alimento, lugar onde se despeja o lixo, fonte de recreação e fonte de recurso, porque as pessoas mariscam não só para comer, como para vender, também. Nas ilhas não há coleta de resíduo, ao menos não com a frequência e a maneira que deveria ser. Nós já vimos geladeira sendo jogada na baía, sabe? E isso não é uma ação isolada, é uma prática que a comunidade desenvolve porque precisa se livrar desse material. O que eu sinto é que existe um negligenciamento. O saneamento é um problema sério, mas não é o único. Tem muitos problemas de segurança, de transporte. E aí as pessoas nem conseguem pensar na qualidade do ambiente em que estão vivendo, exceto numa situação em que sua renda seja afetada, ou sua saúde.
Neste sentido, algumas pesquisas do projeto BTS indicam contaminação importante por metais em alimentos, especialmente em moluscos. Como essa contaminação impacta na saúde dos moradores que consomem diariamente esses mariscos?
A gente viu que se você ingere uma quantidade muito elevada, especialmente de chumbinho, você estaria exposto a níveis acima dos recomendados. Eu e você comermos uma moqueca de chumbinho, um caldinho, eventualmente, isso não traria impacto adverso à nossa saúde. Mas comer 300 gramas dessa proteína diariamente, o que pode ser o caso de quem vive nessas comunidades, aí pode ter problema. E mercúrio é um problema sério ainda hoje na Ribeira. Nós acabamos de fazer uma coleta na Ribeira e os níveis são acima do que deveria ser. É muito, muito elevado. Então, se você está comendo peixe naquela região, a chance de você estar ingerindo [mercúrio] é elevada.
Quais são as áreas mais críticas identificadas nestas pesquisas?
De modo geral, temos a área da Ribeira e a região do Subaé. Essas duas regiões, pensando em metais, são as mais contaminadas. A região do rio Jaguaripe é bem preservada, a parte superior do Paraguaçu também.
E quais são as principais fontes poluidores para a baía hoje?
Toda a região de Aratu, onde a gente tem o CIA [Centro Industrial de Aratu], a região de Camaçari, o porto, é fonte de contaminantes orgânicos e inorgânicos. Aí a gente tem a região da RLAM [Refinaria Landulpho Alves], com os impactos associados à indústria do petróleo. Tem o Terminal Marítimo de Madre de Deus, com os hidrocarbonetos. Já em Itapagipe, tem o histórico da Companhia Química do Recôncavo, que foi a grande fonte de mercúrio para aquela região, além de uma quantidade muito grande de esgoto. No Subaé, a principal fonte é a Plumbum, que está desativada há 30 anos, mas que ainda hoje a gente vê os sinais disso. Algumas regiões do Subaé não têm organismos vivendo nos sedimentos porque as condições são impróprias. Pegar um barco e subir o Subaé é muito triste. Os mangues são muito estragados, a gente vai vendo aquelas casas muito simples com a tubulação de esgoto caindo na água do rio... É difícil assistir a isso. E a região também tem uma indústria de celulose que é altamente contaminante. O que nós podemos fazer para que esses níveis de contaminação diminuam, para que a gente cause menos impactos crônicos? Os órgãos ambientais hoje têm informações suficientes para tomar medidas para melhorar a gestão da baía, para promover ações compensatórias.
Isso não está sendo feito?
Não de maneira ampla. Podem existir algumas ações isoladas. E a baía é um patrimônio muito importante. A história do Brasil começou aqui. E é importante não apenas do ponto de vista histórico, mas econômico também. A gente não pode permitir que os ecossistemas se degradem e a gente simplesmente assista a isso de maneira passiva.
Recentemente, casas foram demolidas em Cacha Pregos, em Itaparica, por conta do avanço do mar. As pesquisas realizadas pelo projeto BTS possibilitam associar esse avanço ao aquecimento global?
O pesquisador Guilherme Lessa tem trabalhado com essas séries temporais. Se a gente pegar padrões de temperatura da água, por exemplo, a gente vê claramente que tem mudanças. A gente pode medir isso, por exemplo, com branqueamento de coral. Isso a gente já evidenciou na BTS. Os últimos cinco anos foram os mais quentes que a gente teve globalmente em termos de temperatura da água do mar. Isso é inquestionável. Mas para fazer essas relações localmente, dentro de uma baía, é preciso ter séries temporais bastante longas. A falta desse monitoramento de longo prazo foi justamente o grande mote para criar o projeto BTS.
FONTE: A TARDE
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