Avanço do mar volta a assustar moradores e pescadores em Atafona (RJ)

População tem vida marcada por incertezas

Atafona: a cidade que está sendo engolida pelo mar no município do Norte-Fluminense Foto: Roberto Moreyra / Agência O Globo

É vento soprando, perigo rondando. Quando vem do nordeste, a rajada de ar deixa os moradores da praia acordados como sentinelas. Em noites de lua cheia ou crescente, a maré alta invade a orla e engole o que encontra pelo caminho. Depois, quando o mar amansa, restam escombros parecidos com sepulturas na areia, pedaços do que já foram casas. Tem sido assim desde 1973. Havia não uma, mas 500 residências, igreja, posto de combustível para embarcações, delegacia, um prédio de quatro andares, 15 ruas inteiras: tudo tragado pelo Atlântico insaciável.

O mar de Atafona é marrom. Azul são os olhos do pescador Manoel Rosa, que veem com temor o escurecer do céu, enquanto sopra o “nordestão brabo”, como ele chama o vento. Passará a noite insone, com mulher, filho e sogra, à espera do inimigo. As defesas contra o mar são poucas naquela pequena casa de dois cômodos, usada como canil pelo antigo proprietário, um advogado de Campos que abandonou a construção: uma cerca de madeira e um banco de areia de dois metros de altura. O mar ainda não bate à porta, mas já começou a golpear a base da pequena duna que sustenta tudo. O canil que virou casa virá abaixo. Só não se sabe quando.

— Sou nascido em Atafona, minha casa ficava lá onde está aquele barco — diz o pescador de 46 anos, apontando uma traineira no meio do mar, a pelo menos 500 metros de distância. — Não tenho como pagar aluguel. A casa estava vazia, a gente entrou. Ninguém consegue dormir aqui. O barulho do mar assusta.

Uma praia na boca do rio

Encontro do Rio Paraíba do Sul com com o mar de Atafona
O novo capítulo trágico na história de Atafona está na foz do Rio Paraíba do Sul, o mais importante do estado, que abastece dez milhões de pessoas. À beira do rio, no Pontal de Atafona, ficam frigoríficos de peixes onde as embarcações atracam, descarregam, enchem o tanque de gasolina e o depósito de gelo, antes de os pescadores saírem de novo para o alto-mar e voltarem até uma semana depois. Agitado como as ondas, o pescador Osni Meireles, de 39 anos, é o retrato do desespero. Seu barco está a 20 metros do píer. A areia trazida pelo mar está assoreando a foz do rio, e onde havia cinco metros de profundidade, no píer dos frigoríficos, formou-se uma praia.

— Quando a maré baixa, o barco fica ancorado lá embaixo, a mais de cem metros do píer. Temos que levar o peixe nas costas. E o pior: os barcos mais pesados, como o meu, estão encalhando. Há um mês começamos a descarregar no Espírito Santo, são quatro horas de navegação, custo de alimentação, combustível, salário dos empregados e mais a taxa que os capixabas cobram da gente — desabafa Osni, enquanto carrega de gelo seu barco, batizado como “Custou, mas saiu”.

— Gasto R$ 3 mil a mais para entregar o peixe no Espírito Santo, que de lá vai para o Ceasa, no Rio. Atafona está perdendo esse dinheiro.

O povoado tem 30 mil moradores e 80% deles vivem da pesca. Muitos dos quatro mil pescadores vinculados à associação local estão fazendo o mesmo que Osni. Apenas barcos com menos de dez toneladas conseguem atravessar a foz do rio. Custa cada vez mais sair para o mar. Um vídeo recente feito por um pescador mostra uma dezena de barcos imóveis, que não conseguem avançar diante do mar bravio.

— Isso porque a maré está cheia. Os bancos de areia estão fechando o canal de navegação. O mar está igual cadeia sem porta — diz o homem.

Também é preciso esperar a maré encher para conseguir entrar no canal. Às vezes, os pescadores passam 12 horas parados, aguardando o momento de voltar para casa. Quem é teimoso acaba encalhando, correndo o risco de perder a pesca e o barco. Enquanto isso, os donos dos frigoríficos perdem o serviço das grandes embarcações, de até 20 toneladas. Mas o pior é o risco desses negócios à beira-rio desaparecem por completo. Há duas semanas, a água começou a invadir o que sobrou do Pontal de Atafona.

"Visite Atafona antes que acabe"

Muro de casa que foi engolida pelo mar em Atafona
Em uma placa no Pontal de Atafona, lê-se uma pichação catastrófica: “Visite Atafona antes que acabe”. No escombro de uma casa, outra frase que remete ao fim do mundo: “Jesus está chegando”, e a sensação é que só mesmo a providência divina pode salvar o pequeno distrito do desaparecimento. O temor dos moradores aumentou nas últimas duas semanas, quando a água do mar invadiu o Pontal, onde o Paraíba do Sul encontra o Atlântico. O bar do Santana, antes bar do Almir Largado, foi obrigado a fechar as portas depois que as ondas levaram o deque, derrubaram palmeiras e inundaram o espaço. Mesmo destino do segundo bar de Jorginho Elvis Presley — o anterior também foi levado pelas ondas, no antigo Pontal.

O frigorífico de Julio Monteiro da Silva, vulgo Sapinho, quase teve sua parede derrubada pela força da água: ele, seu filho e funcionários tiveram que fazer às pressas um buraco na parede para escoar a água.

Imagens de Atafona, no Norte-Fluminense. A cidade está sendo engolida pelo mar 

Processo de erosão começou há 40 anos e já destruiu até um prédio de quatro andares

Pescadores que moram na região temem o dia em que perderão suas casas

O fenômeno acontece pelo encontro do Rio com o mar. E vem piorando cada dia mais

A areia trazida pelo mar está assoreando a foz do Rio Paraíba do Sul, o mais importante do estado

Onde havia cinco metros de profundidade, no píer dos frigoríficos, formou-se uma praia.

Por isso os pescadores passaram a descarregar no Espírito Santo

Apenas barcos com menos de dez toneladas conseguem atravessar a foz do rio. Custa cada vez mais sair para o mar
Foto: Roberto Moreyra / Agência O Globo
— Aqui encostavam traineiras. De um mês para cá, piorou muito. Os barcos não chegam mais, porque não tem água, o rio está assoreado. Quase todos estão descarregando os peixes no Espírito Santo. Com isso deixo de vender óleo, gelo e faço menos fretes. Tenho sete funcionários, terei que demitir alguns. Ainda não sei como contar para eles — afirma Sapinho, desolado.

Segundo o vendedor de peixes Manoel Abreu, a invasão do rio pelo mar fez sumir espécies de água doce como sairú e piaba, prejudicando também a pesca artesanal no Paraíba do Sul. A associação de pescadores faz projeções terríveis: ela corre o risco de simplesmente desaparecer se a foz do rio e a costa de Atafona não receberem investimentos com urgência. Seria a segunda vez que uma associação de pescadores acaba em Atafona: a primeira ficava na Ilha da Convivência, onde existia o trecho mais bucólico e antigo do distrito. A ilha inteira foi tragada pelo mar.

Projeto avaliado em R$ 180 milhões

Imagem aérea da área que foi engolida pelo mar em Atafona
 Roberto Moreyra / Agência O Globo
A pouca esperança dos moradores, especialmente dos que vivem da pesca, é que a prefeitura consiga recursos para finalmente tirar do papel o projeto do Instituto Nacional de Pesquisas Hidroviárias (INPH), órgão de pesquisas do Ministério dos Transportes. Segundo a prefeita de São João da Barra, Carla Machado (PP), haverá uma reunião com o Inea na próxima quarta-feira para acelerar o processo de licenciamento da obra, planejada há três anos. O projeto deve custar R$ 180 milhões.

— Dependemos de recursos da União, a costa brasileira é de responsabilidade do governo federal e o rio passa por três estados. Meu orçamento é de 280 milhões por ano, é impossível termos condições financeiras de assumir esse investimento mesmo que fosse da nossa competência. E agora, há menos de um mês, temos essa invasão do mar no Pontal — argumenta a prefeita, que esteve no dia 5 de junho em Brasília, onde entregou o projeto do INPH ao presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (PMDB).


Segundo Carla, que já foi prefeita antes, “o Paraíba vem perdendo força há muito tempo, pelos desvios para abastecer os grandes centros”. Desvios feitos para o abastecimento de Guandu e para a construção de hidrelétricas reduziram em cerca de 70% a vazão do rio. Este ano será inaugurada uma obra que promete acabar com o risco de falta d’água em São Paulo, mas ninguém sabe o que acontecerá com Atafona. A interligação do Paraíba do Sul com o Sistema Cantareira poderá captar 5.130 litros por segundo de água. Com vazão ainda menor, é imprevisível o impacto no Paraíba do Sul e na costa de Atafona.

— Vai piorar a situação. Estou muito preocupada com isso, pois a água está se aproximando da comunidade pesqueira — afirma a prefeita, que não demonstrou a mesma preocupação com a construção do megaempreendimento Porto do Açu, a poucos quilômetros de distância, tanto que em 2008 concedeu o título de Barão de São João da Barra ao empresário Eike Batista, construtor do empreendimento e hoje presidiário no Complexo de Gericinó.

Casa destruída pelo mar de Atafona - Roberto Moreyra / Agência O Globo
De acordo com o engenheiro Domenico Acetta, diretor do INPH, o estudo desenvolvido pelo instituto é similar ao projeto feito em Marataízes, no Espírito Santo, para conter a erosão costeira. Serão usados nove cinturões de pedra em formato de ferraduras, com 400 metros entre um e outro e aterros hidráulicos.

— Vamos utilizar 2,8 milhões de metros cúbicos de areia para o engordamento da praia, e também 385 mil metros cúbicos de pedra para as barreiras. É lógico que não podemos reconstituir os 500 ou 600 metros de praia que viraram mar, mas é possível estabilizar o problema de forma definitiva. Fizemos algo parecido em Marataízes e também em Conceição da Barra. Faz tempo que muito se discute e ninguém faz nada em Atafona — afirma Domenico.

A memória de Atafona

A moradora Sônia Ferreira que ao acordar todas as manhãs faz uma oração na mesma janela da casa 

Foto: Roberto Moreyra / Agência O Globo
Foi em 1973 que Atafona surgiu para o mundo com seu desastre iminente, seu cenário apocalíptico, espalhando assombro e melancolia, desafiando engenheiros das principais universidades fluminenses e até dos Estados Unidos a encontrarem uma solução. À medida que o mar avançava, deformando a costa do distrito, famílias abastadas de Campos dos Goytacazes começaram a frequentar outras praias, como Guarapari, Rio das Ostras e Búzios. Até então, era símbolo de status ter casa de veraneio em Atafona. Na praia, mulheres da sociedade campinense desfilavam vestidos da última moda. A via à beira-mar foi batizada de Avenida Atlântica nos anos 40 — era lá que ficavam as casas mais luxuosas do distrito. Asfaltada nos anos 80, a Atlântica está submersa.

O artista plástico e poeta Jair Vieira, de 81 anos, é a memória viva de Atafona. Ele guarda mais de 200 fotos de como era o povoado antigamente, no tempo dos bares do Ricardinho, do Antonio e do Espanhol, no Pontal, todos engolidos pela água. Há também fotos das chamadas "pedras de Tuim". Ele explica:


— Um morador antigo, o engenheiro Raul Tuim, colocou pedras enormes na frente da casa dele. Mas a água entrou pelo lado. Lembro dele colocando aquelas pedras e dizendo “nem Deus leva minha casa” — conta Jair. — A casa foi embora, mas as pedras estão lá até hoje.

Seu Jair assiste de camarote ao desleixo das autoridades. Em abril de 2008, após a queda do único edifício de Atafona — construído na orla pelo empresário Júlio Ferreira da Silva em 1973 —, conseguiu organizar um abaixo-assinado e reunir mais de 1,2 mil assinaturas, pedindo uma intervenção imediata para salvar Atafona. O documento foi encaminhado ao ex-governador Sérgio Cabral, que o remeteu ao ex-secretário de governo, Wilson Carlos. Os dois estão presos, investigados em um esquema de corrupção devastador. Nada fizeram por Atafona.

As ruínas do prédio de Julinho, como era conhecido o empresário, continuam na areia. Quando o edifício veio abaixo, Sônia Ferreira chorou. Ela morava no Rio quando conheceu Atafona e viajava sempre que podia para o Norte Fluminense. Há exatos vinte anos, mudou-se para uma das melhores casas da região, em um grande terreno onde eram organizadas festas de carnaval — o Atafolia. Ao abrir a janela de seu quarto, Soninha dava de cara com o edifício de 48 apartamentos onde foi inaugurado o primeiro supermercado da cidade.

O artista plástico Jair Vieira, que tem uma coleção de fotografias de Atafona
Roberto Moreyra / Agência O Globo
— Encostei na parede e chorei depois de ver o prédio desabar com a água. É a história da gente indo embora. Nunca imaginei morar de frente para o mar, mas ele foi se aproximando — afirma Soninha, como é conhecida. — Meus filhos ficam preocupados, mas já disse para eles que não sou louca. Fico até o muro da casa cair.

Ao acordar, todos os dias, a senhora de 72 anos olha para o mar e faz uma oração, pedindo que ele fique onde está. Ela se agarra à fé em Deus e acredita que Atafona irá sobreviver. Tem planos de pintar e reformar a casa.

Fonte: O Globo

Comentários

Mais visitados