Atafona por água abaixo (RJ)
A história de um pontal que pode desaparecer do mapa
RIO - Ela se lembra de ter ido dormir e acordar com a casa sendo levada pelo mar. No primeiro momento, não sabia se chorava ou se corria para salvar os pertences arrastados pela água. Daí em diante, o mar foi só tomando conta. A história da vendedora de peixe Pedrina Bueno é apenas uma de muitas perdidas nos escombros do Pontal de Atafona, distrito de São João da Barra, no Norte Fluminense. Desde os anos 1970, o lugar sofre com o avanço do mar, que afeta casas de moradores e veranistas. O problema parece ter se acelerado, segundo relatos locais, e não há solução à vista.
Pedrina viveu um tempo de favor na casa de amigos até conseguir uma casa em outro bairro. Ela se lembra do clube e do posto de gasolina (muito conhecido por ser o único na cidade), ambos destruídos pelo mar.
— Não consegui salvar quase nada, e o que restou foi apenas a recordação. As paredes caíram, e tudo foi por água abaixo — conta.
Especialistas observam o fenômeno há anos. Um estudo do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo levanta três hipóteses como causas do problema em Atafona. A primeira se baseia no acúmulo de sedimentos na foz, que enfraqueceu a força da correnteza do Rio Paraíba do Sul e provocou a sobreposição do mar ao rio.
Resto das casas destruídas na praia de Atafona - Larissa Muylaert |
Outra hipótese é a mudança das correntes marinhas, que contribuem para a erosão. Por fim, a praia pode estar sofrendo desmoronamentos regressivos na subsuperfície, o que contribui para aumentar muito rapidamente o nível médio do mar.
— Esse processo erosivo sempre existiu, mas não acentuado como está hoje. Muitos dizem que a solução para o pontal pode ser um quebra-mar, e isso realmente pode ser feito. Mas, toda vez que mudamos uma corrente marinha, ela vai para outro lugar. Pode até resolver o problema aqui, mas vai prejudicar outro local — afirma o geógrafo Alex Ramos, do Espaço da Ciência.
O tema está no cotidiano dos moradores. Para alguns, é a natureza no comando.
— O mar está levando o que é dele. O ser humano só destrói — opina o lavrador Ivaldo Silva, de 58 anos, que já perdeu uma casa.
São cerca de três metros a menos de faixa de areia a cada ano. O processo se intensifica de novembro a março, quando a maré aumenta e, com ela, o nível do mar.
— Atafona já foi muito bonita. Vinha gente de fora para conhecer. Agora, eles vêm mais para ver a destruição ou visitar parentes que ficaram por aqui — lamenta o pescador Jorge Gonçalves, que tem o mar como parceiro há 36 anos. — Quase ninguém mais vive da pesca, dependendo do Rio Paraíba do Sul pra sobreviver.
FALTA DE VERBAS
O mar é, ao mesmo tempo, cúmplice e destruidor na vida dos pescadores da região. E as autoridades locais não têm conseguido frear a erosão. De acordo com a prefeitura de São João da Barra, o município não é capaz de arcar com os gastos de um projeto para conter o avanço do mar.
“Estudos efetuados pela Secretaria de Portos, por meio do Instituto Nacional de Pesquisas Hidroviárias, que mostra a viabilidade de contenção a um custo em torno de R$ 130 milhões a R$ 190 milhões, foge às condições do município”, informou a assessoria da prefeitura, por e-mail.
O órgão informou, ainda, que buscará junto ao governo federal recursos para viabilizar o Anteprojeto de Proteção e Restauração de praia de Atafona, já pronto, mas que não foi à frente, segundo a prefeitura, por falta de verbas.
— Com vários processos feitos para desvio de água para abastecer cidades vizinhas, o rio passou a jogar o acúmulo de sedimentos no mar. Tudo isso contribuiu para o processo erosivo. O maior problema é o Rio Paraíba do Sul. Ninguém toma providência. O rio está acabando — afirma Jorge Gonçalves.
Dentre as várias hipóteses sobre a erosão marinha no pontal, a moradora Silvana Gonçalves, de 36 anos, prefere acreditar que é um fenômeno natural.
— É gostoso ouvir o barulho do mar aqui do lado. Não tenho medo. Deus sabe de todas as coisas. O que é do mar, é do mar. A natureza não tem explicação.
Escombros de uma residência no Pontal - Larissa Muylaert |
Outra moradora, Silvana Lisboa, reside em uma casa tomada pela areia, com seus dois filhos. Seguiria ali pelo resto da vida “se não fosse esse rebuliço do mar”. Ela já encontrou a moradia desabitada, há três anos. Nem sequer sabe quem é o verdadeiro dono.
— Esta casa devia ser de veranista que acha que perdeu a casa nos escombros. Eu ocupei, mas se vierem eu saio — promete.
Jair Viera vive em Atafona desde que nasceu, e guarda fotos sobre a cidade nos anos 1960. A ideia é criar um acervo.
— Antes, se via a divisão entre o mar e o rio. Hoje, o rio não tem mais força. Foram 15 ruas e 450 casas destruídas, aproximadamente — estima. — Só sinto tristeza quando olho o Pontal. Antigamente, era lotado, tinha palmeiras, pescadores, crianças e agora é isso aí. Atafona vai ficando só na lembrança.
LEMBRANÇAS DA ILHA
Faixa de areia que restou da Ilha da Convivência - Larissa Muylaert |
Os moradores temem que Atafona se transforme numa nova Ilha da Convivência. O lugar fica a 850 metros do pontal e era residência de pescadores. Já chegou a reunir 400 famílias, mesmo com a água potável chegando em barcos, e sem luz elétrica. Hoje, o panorama é diferente. Quem visita o local não vê nada além de uma faixa de areia.
Mas, aos olhos de quem a conheceu, a Convivência “deixou saudade”, conforme conta Benedito Pedra, ex-morador da ilha.
— Nasci lá. Era o lugar da gente. Me casei e criei meus filhos.
O geógrafo Alex Ramos relata que era comum na ilha a prática do escambo entre os moradores. Devido à erosão marinha, hoje a Convivência possui apenas 15% da área original. A última moradora foi Belita Pedra, já falecida. Ela ajudava a manter a ilha e dizia que só iria embora quando a Convivência acabasse ou ela morresse.
Com saudades da ilha e de seus amigos que hoje moram distribuídos em Atafona, São João da Barra e Grussaí, Benedito resume o que sente.
— Éramos uma grande família, todo mundo se conhecia, se ajudava. Hoje não sei onde as pessoas moram. O mar levou parte da Convivência quando separou a gente.
Fonte: O Globo
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