A balança da natureza

Recentemente, estudos coordenados pelo oceanógrafo Luiz Drude de Lacerda no projeto Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Transferência de Materiais Continente-Oceano (INCT-TMCOcean) apontaram uma daquelas conexões distantes de causa e efeito que põem em conflito as necessidades básicas do ser humano e o equilíbrio do planeta. A construção de barragens de rios nos confins do sertão nordestino estaria causando o avanço do mar no litoral do País. Não apenas isso: a navegação fluvial e a pesca artesanal também estariam sendo impactadas. Para equacionar o problema, Lacerda, homenageado este ano com o Prêmio Fundação Bunge, só vê uma saída: buscar mais conhecimento. Aqui, o oceanógrafo fala sobre seu estudo e o papel que cabe à Ciência diante do dilema.

Que implicações a construção de barragens traz para o semiárido?

Barragens são inevitáveis, principalmente no semiárido. Isso é muito importante frisar. Só que tem o outro lado da moeda, que é o impacto na bacia de drenagem do rio e, eventualmente, no litoral. No semiárido, durante oito meses por ano, o fluxo dos rios é muito pequeno ou inexistente, porque não chove. Até que, com as chuvas de verão, os fluxos aumentam e transportam sedimentos e nutrientes para o mar. Quando você faz uma barragem, você regulariza o fluxo do rio. Isso é interessante por um lado, porque evita enchentes, mas por outro impede o funcionamento natural da bacia de drenagem, que é exportar material na estação das chuvas. [Sem os grandes fluxos] as calhas dos rios não conseguem se livrar do sedimento, e vários deles perdem a navegabilidade. Você tem crescimento de ilhas fluviais e diminuição de profundidade. Além disso, você corta o suprimento de material para a zona costeira, que depende desse aporte de sedimento para impedir a erosão causada pelo mar. E você pode ter um impacto também na cadeia alimentar costeira, que depende dos nutrientes que vêm do continente.

Estranho pensar que regularizar o fluxo do rio cause impacto negativo.
Para a população humana, de um modo geral, isso é interessante. Mas ponha-se no lugar de um peixe que precisa de sedimento grosseiro para colocar o ovo no fundo do rio... Para você ter uma ideia, o São francisco tinha vazões que variavam de mil a 20 mil metros cúbicos por segundo; hoje está fixo em 2 mil. Isso causa um impacto ecológico muito grande. E no semiárido é mais crítico, porque tudo quanto é organismo e ecossistema da região evoluiu para um sistema de pulsos, de quatro meses de chuva e oito de seca; de repente, você não tem mais esses pulsos, é tudo um fluxo regular.

Outro impacto apontado pelo estudo é a salinização dos rios. Por quê?
No semiárido, independentemente das barragens, já se vê uma diminuição da pluviosidade nos últimos 40 anos. Quer dizer, já está diminuindo a quantidade de água doce disponível. Aí a barragem diminui mais ainda, e você quase não tem água doce chegando ao mar. Os lençóis freáticos se salinizam. O Rio Jaguaribe, durante boa parte do ano, é como se fosse um braço de mar até uns 20 quilômetros da costa. Outro dia vimos, numa mesma rede de pesca, traíra, um peixe de água doce, e siri, um bicho de estuário [zona de transição entre o rio e o mar].

E o impacto sobre os manguezais?
Está aumentando a área de manguezal. Porque, antes, na estação seca se acumulava uma prainha cheia de lama, cresciam lá umas plantinhas de mangue. Aí, na estação chuvosa, o rio limpava tudo. Agora, se o rio não tem mais competência para fazer isso, os mangues vão colonizando essas áreas, ainda mais com a entrada de água salina.

O que deve ser feito, então, em relação às barragens?
Você não pode falar: “Não queremos mais barragens no Nordeste”. Se fizer isso, metade da população morre de sede no dia seguinte. A agricultura irrigada acaba. Não é questão de ser ruim ou bom. É como a mudança climática global: é inevitável, o que você tem que fazer é se adaptar a ela. Nosso trabalho no INCT é entender essa situação para propor ações mitigadoras e de adaptação.

Como quais?
Por exemplo, não adianta fazer um grande empreendimento imobiliário na beira do mar, porque daqui a 10 anos essa beira do mar não existe mais. Também não adianta incentivar o pescador local, porque vai haver uma diminuição da produtividade; então tira o sujeito da pesca artesanal e bota para fazer aquacultura [criação controlada de organismos aquáticos]. Cabe à gente indicar ao poder público o que fazer, como propiciar treinamento: “Nesse reservatório, você produz até 3 mil toneladas de tilápia por ano, o que vai garantir emprego e renda a uma população que antes fazia pesca artesanal; mas não mais de 3 mil, ou vai comprometer a qualidade da água”. Esse tipo de coisa a gente faz, interagindo com a cadeia produtiva da piscicultura, da carcinicultura [criação de camarões], da pesca artesanal e com os comitês de bacias.

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Fonte: http://www.fundacaobunge.org.br | Jornal Cidadania, Edição 63 • Ano 8 - Novembro/Dezembro 2011

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